quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O Navio Satélite - Desterrados após a Revolta da Chibata

A Amazônia da década de 1900 poderia muito bem se enquadrar nos desenhos dos antigos mapas de navegação, que ilustravam com monstros tenebrosos as regiões desconhecidas. Era um lugar inóspito, com doenças e perigos pouco conhecidos do resto do país. No entanto, alguns desbravadores estavam por lá, apoiados em mão-de-obra barata, quase escrava, para explorar a floresta. Os grupos se dividiam entre ricos donos de seringais e desbravadores ligados ao governo, que queriam promover o desenvolvimento no território com iniciativas como a construção de linhas telegráficas na região, orquestrada pelo coronel Rondon, e a lendária estrada de ferro Madeira Mamoré. E era para essas obras de grande porte, no meio da selva amazônica, que seguiam muitos dos cidadãos indesejados do novo regime, detidos na Capital da Nação. Os acontecimentos de dezembro de 1910 anteciparam o despejo de mais um lote desses desterrados na região.
Embora não tivesse decretado o Estado de Sítio, o governo havia lotado as prisões cariocas, e se livrar daquelas pessoas tornou-se uma necessidade para as autoridades. Assim como acontecera antes, com os participantes da Revolta da Vacina, em 1904, o destino estava definido. Iriam trabalhar na extração da borracha e nas obras de infra-estrutura da Amazônia.
Era noite de 24 de dezembro quando o navio Satélite partiu secretamente do Rio de Janeiro, levando 441 pessoas. No relatório do comandante do navio, constam 105 ex-marinheiros e rebeldes do Batalhão Naval, 44 mulheres e 292 vagabundos, isso, conforme o documento oficial. O nome de João Cândido chegou a ser incluído na lista do Satélite, mas foi retirado. Se fuzilado e jogado no mar, como foram dez de seus companheiros de revolta, segundo o diário de bordo do Satélite, poderia ter virado um mártir.
Alguns marujos tinham uma cruz na frente do nome. Partiram do Rio, mas nunca chegaram à Amazônia, foram fuzilados durante o trajeto de mais de 30 dias. Em alto mar, as contas da Revolta da Chibata foram acertadas. Marinheiros pagaram com suas vidas. Enfurnados no porão da embarcação, os que resistiram concluíram o acerto em solo amazônico, com temperatura de mais de 40 graus, sem recursos nem ajuda médica, sem guias ou orientação para a sobrevivência.
A chegada na Amazônia chocou quem viu de perto a situação dos desterrados. Numa carta ao então senador Rui Barbosa, Booz Belfort de Oliveira, integrante da comissão do coronel Rondon, contou o que viu. O relato foi publicado no livro de Edmar Morel. “(...) os desgraçados foram guindados, como qualquer coisa, menos corpos humanos, e lançados ao barranco do rio. Eram fisionomias esguedelhadas, mortas de fome, esqueléticas e nuas, como lêmures das antigas senzalas brasileiras. As roupas esfarrapadas deixavam ver todo o corpo. As mulheres, então, estavam reduzidas às camisas”.
De acordo com os relatos de Oliveira, despejados na Amazônia, homens e mulheres do Satélite foram leiloados como num leilão de gado, em lotes. Os seringueiros olhavam e tentavam encontrar na exposição dos corpos quase nus algum sinal de que o dono daquele corpo lhes pudesse ser útil no seringal. Os que sobraram foram entregues à Comissão Rondon. Mesmo acostumados a servir, muitos ex-marinheiros se rebelaram contra as condições de trabalho na floresta. Foram fuzilados na frente de toda a comissão para que servissem de exemplo. E Oliveira completa, concluindo o destino dos que embarcaram no Satélite: “(...) e desta maneira os outros todos foram dizimados ou pelas balas ou pela malária”. Desapareceram em meio à floresta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário